A Constituição brasileira de 1824 estabelecia em seu artigo 5º:
“A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião
do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico,
ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do
Templo”.
A atual Constituição não repete tal disposição, nem institui qualquer
outra religião como sendo a oficial do Estado. Ademais estabeleceu em seu
artigo 19, I o seguinte:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
Com base nesta disposição, o Estado brasileiro foi caracterizado
como laico, palavra que, conforme o dicionário Aurélio, é sinônimo
de leigo e antônimo de clérigo (sacerdote
católico), pessoa que faz parte da própria estrutura da Igreja. Neste conceito, Estado
leigo se difere de Estado religioso, no qual a religião
faz parte da própria constituição do Estado. São exemplos de Estados religiosos
o Vaticano, os Estados islâmicos e as vizinhas Argentina e Bolívia, em cujas
constituições dispõem, respectivamente:
“Art. 2. El Gobierno Federal sostiene el culto Católico Apostólico
Romano” – “Art. 3. Religion Oficial – El Estado reconoce y sostiene la religion
Católica Apostólica y Romana. Garantiza el ejercício público de todo otro
culto. Las relaciones con la Iglesia Católica se regirán mediante concordados y
acuerdos entre el Estado Boliviano y la Santa Sede.”
Atualmente, o termo Estado laico vem sendo utilizado no
Brasil como fundamento para a insurgência contra a instituição de feriados
nacionais para comemorações de datas religiosas, a instituição de monumentos
com conotação religiosa em logradouros públicos e contra o uso de símbolos
religiosos em repartições públicas. Até mesmo a expressão “sob a proteção de
Deus”, constante no preâmbulo da Constituição da República vem sendo alvo
de questionamentos.
É importante ressaltar que o conceito de Estado laico não
deve se confundir com Estado ateu, tendo em vista que o ateísmo e
seus assemelhados também se incluem no direito à liberdade religiosa. É o
direito de não ter uma religião conforme disse Pontes de Miranda: “liberdade de
crença compreende a liberdade de ter uma crença e a de não ter uma crença”
(Comentários à Constituição de 1967).
Assim sendo, confundir Estado laico com Estado ateu é privilegiar esta
crença (ou não crença) em detrimento das demais, o que afronta a
Carta Magna.
A Constituição da República apesar do disposto em seu artigo 19, inciso
I protege a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e o
faz da seguinte forma:
Art. 5.:VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo
assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da
lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência
religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva;
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa
ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de
obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa,
fixada em lei;
Art. 150 - Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte,
é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
b) templos de qualquer culto;
Art. 210 § 1º - O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá
disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.
Art. 213 - Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas,
podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas.
Art. 226 § 2º - O casamento religioso tem efeito civil, nos termos da
lei.
Além das formas de colaboração estatal especificadas no texto
constitucional, o próprio artigo 19, inciso I estabelece, de forma genérica,
que no caso de interesse público, havendo lei, os entes estatais podem
colaborar com os cultos religiosos ou igrejas, bem como não pode embaraçar-lhes
o funcionamento.
Por estas razões, muito mais adequado do que chamar a República
Federativa do Brasil de Estado laico, seria chamá-la de Estado
plurireligioso, que aceita todas as crenças religiosas, sem qualquer
discriminação, inclusive a não crença.
No entanto, conforme já aduzido, questão interessante surge na concepção
de Estado plurireligioso, a respeito da forma a ser utilizada pelo Estado, em
certas ocasiões, de optar pelo culto de determinada crença religiosa, quando
isso implica em afastar outra. Especificando, porque permitir que se construa
uma estátua do Cristo, e não a do Buda? Por inaugurar
um logradouro público com o nome de Praça da Bíblia e
não Praça do Alcorão? E porque não deixar de construir um monumento
com conotação religiosa, com o fim de não ofender a consciência dos não crentes
e a dos crentes de outras seitas?
Este impasse deve ser resolvido através da
interpretação sistemática do texto constitucional.
Assim dispõe a Constituição da República em seu artigo 1º:
“A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel
dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado
Democrático de Direito(...)Parágrafo único - Todo o poder emana do
povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos
termos desta Constituição”.
Afirma a doutrina que o princípio da maioria, juntamente com
os princípios da igualdade e da liberdade, é princípio fundamental da
democracia. Aristóteles já dizia que a democracia é o governo onde domina o
número.
Destas considerações, se pode aduzir que, embora o Estado deva dispensar
tratamento igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem
livremente, com base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for,
por determinada crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de
construir um monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus
seja louvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua
legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado
credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de
embriões humanos e união homoafetiva.
É importante frisar que tal posicionamento não visa beneficiar a Igreja
Católica, cuja predominância no Brasil se deve às razões culturais e históricas
decorrentes do processo de colonização que deu origem ao povo brasileiro
maciçamente composto por descendentes de europeus católicos, além do fato de já
ter sido religião oficial do país por mais de trezentos anos. Em vista disto, é
perfeitamente natural que, sendo a maioria da população brasileira católica, como
afirmam, que o culto católico tenha maior atenção estatal que os demais. Vale
ressaltar que o que determina a preferência estatal por determinado credo é a
vontade majoritária popular, que não obstante às razões históricas, pode se
modificar, mormente como se vê nos tempos atuais em que asseitas evangélicas vêm
ganhando força política, importando até mesmo na eleição de representantes.
Ressalte-se ainda que a preferência da ação estatal por determinada religião
não se situa apenas em âmbito nacional, mas também regional, sendo um exemplo a
Constituição do Estado da Bahia, na qual o artigo 275 e incisos privilegiam a
religião afro-brasileira, presumindo ser esta a preferência do povo
baiano.
Embora o Estado deva respeitar e proteger os não crentes e os crentes de
outros cultos, não nos parece adequado que o Estado deva suprimir de seu ofício
qualquer alusão a determinado culto religioso, ou deixe de colaborar com este
por causa de uma minoria insatisfeita, que tem toda a liberdade,
constitucionalmente assegurada, de pregar a sua crença ou não crença, com o fim
de conquistar novos adeptos, bem como eleger seus representantes para que
defendam seus interesses perante o Estado.
Por fim, vale também colocar que, de acordo com o artigo 19, inciso I da
Constituição, é vedado ao Estado embaraçar o funcionamento dos cultos
religiosos. Tal informação tem grande relevância, principalmente em face de
situações concretas em que se postula ao Poder Judiciário pretensões no sentido
fazer com que determinada religião haja em desconformidade com a sua doutrina,
na maioria das vezes para satisfazer um capricho. Exemplo mais comum é
pretender que a Igreja Católica realize casamento de pessoas divorciadas, o que
vai de encontro com a sua doutrina que não reconhece o divórcio e veda a
duplicidade de casamentos. Da mesma forma seria incabível a imputação do delito
previsto no artigo 235 do Código Penal, no caso de religiões que permitam a
prática da poligamia, desde que a multiplicidade de casamentos se restrinja ao
âmbito da religião, sendo que estes casamentos não deverão produzir efeitos
para o direito civil pátrio, por afrontar os princípios constitucionais que
tratam da família. Nos demais casos, a intervenção estatal nos cultos
religiosos deve se reger, como já foi aduzido, através de uma interpretação
sistemática e harmônica do texto constitucional.
Conclusões
1. O Estado brasileiro,
de acordo com a sua Constituição, deve dispensar tratamento igualitário a todas
as crenças religiosas, incluindo a não crença, sem adotar nenhuma delas como
sua religião oficial;
2. A inexistência de
religião oficial no Estado não significa que o Estado seja partidário da não
crença (ateísmo e assemelhados), pois, com base no princípio da
liberdade religiosa, esta deve ser posta ao lado das demais religiões, não
podendo junto com qualquer uma delas ser também considerada oficial;
3. Em caso de situações
em que o Estado tenha que optar por favorecer uma determinada crença religiosa
ou a não crença, o critério de escolha deve ser o princípio democrático da
preferência da maioria, exprimida diretamente pelo povo ou através de seus
representantes, ao contrário do que ocorre nos Estados que adotam religião
oficial, que prevalecerá ainda que a maioria da população prefira outra;
4. Não há qualquer
inconstitucionalidade no fato do Estado, instituir um feriado, construir um
monumento em logradouro público, fazer referências a Deus, bem como elaborar
sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado
credo, tendo em vista que se presume nesta atitude a expressão da livre vontade
popular, que pode se modificar em favor de outra crença religiosa, sem que isto
implique em modificação constitucional.
5. Com base no artigo
19, inciso I da Constituição da República, o Estado não pode intervir nas
religiões de forma a compelir que ajam em desconformidade com a sua doutrina,
sendo que, qualquer cerceamento à liberdade de culto, deve ser feita com base
na interpretação sistemática da Constituição da República, de forma a
harmonizar as suas disposições.
Fonte: Victor Mauricio Fiorito Pereira
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro